Tenho que contar uma história. Não será completamente agradável de se ouvir, mas é uma história que precisa de ser contada. Esta história, ou esta narrativa se preferirem, atravessa a vida de muitos cães, como eu, e infelizmente perpetua-se no tempo porque ninguém por nós fala.
Trago este relato porque, no alto dos meus muitos anos, já sou o que chamam de um cão sénior, vi muita coisa e vi muitos companheiros de quatro patas passarem pelas mesmas angústias e sofrimentos. Pretendo trazer luz ao que está na sombra, a um mal que tantos testemunham mas só alguns decidem ver.
E começo pela pressão. Às vezes a pressão é enorme. A pressão para sermos e agirmos tal e qual como esperam é avassaladora. E quanto mais velhos ficamos, mais esta pressão aumenta e aumenta.
Quando se é jovem, tudo nos é perdoado, não há ninguém que não se encante com as nossas trapalhices. Os nossos descuidos são imediatamente esquecidos, ou relevados, porque se assume que é normal não sabermos nada, rigorosamente nada, quando se é pequeno. Mas os meses passam e de repente a tolerância vai diminuindo e já não é o descuido engraçado que se vê mas o trabalho que dá.
– Nunca mais aprendes!
– Estás sempre a fazer as mesmas asneiras!
– Raios parta o maldito…
De bestiais a bestas… ou encaixamos naquela caixa do “o meu é super inteligente, aprendeu a fazer tudo e a cumprir as regras todas logo.” Não há cá lugar para a mediocridade. Ou entendes tudo o que te dizem, berram, no tempo que se considera adequado ou então claramente nasceste com poucas capacidades, és um inútil, não servirás para muito…
Esqueçamos que nos falam numa língua que não é a nossa, que não comunicam como comunicamos. Esqueçamos que nos berram e nos assustam muitas vezes. Esqueçamos que toda a linguagem corporal, aquela que até conseguimos ler melhor, nos diz que há agressividade e falta de tolerância. O que nos resta? Resta-nos fazer malabarismo, magia, para sermos os seres perfeitos e fofinhos que imaginaram que iam ter quando nos foram buscar ainda bebés…
Mas entre a expectativa e a realidade há um fosso e nesse fosso caem os rotulados de medíocres, de rebeldes, de medrosos, os que se defendem, os que não conseguem aprender. Mas serão eles menos perfeitos? Menos afetuosos? Menos inteligentes? Menos capazes? Menos cães?
A resposta é um ressonante não! A única coisa que não são é sortudos, porque os menos perfeitos, menos afetuosos, menos inteligentes e menos capazes são os donos que os acolheram. Donos que desistem, donos que abandonam, donos que maltratam, donos que não merecem.
Mas a vida é, à sua maneira, perfeita e consegue arranjar forma de viver no equilíbrio. Tenta, como em tudo, restabelecer uma ordem às coisas e faz com que estes cães, que tiveram o infortúnio de calhar com os piores dos humanos, consigam ter a sua 2ª chance. E é com essa chance que a magia acontece. Não só são aceites tal como são, na sua perfeita imperfeição, como veem a sua personalidade, características mais vincadas, serem abraçadas e acolhidas como se fossem o segredo para fazer da vida dos donos uma vida completa.
Neste encontro a pressão cede, cresce o respeito entre dois seres que podem não ser igualmente racionais mas são ambos seres emocionais que se admiram e aceitam, sem condições.
Os cães abandonados são cães que não conseguiram preencher todos os requisitos que lhes foram impostos, atender a todas as expectativas. São cães que caem fora do normal pois são para além disso. São excepcionais e não conformistas. Sim, não fizeram sempre o xixi no sítio certo, gostam de fazer explodir almofadas, roem os sapatos preferidos dos donos, ladram quando alguém passa na porta de casa. Não aprendem truques porque não precisam, porque naturalmente já sabem a única coisa que precisam de saber, ser cão é ser livre, feliz e único. São estas características a chave para poder encontrar no humano o seu igual de duas patas. E se esse encontro não acontece logo à primeira, sabemos que a vida, a sábia vida, vai fazer com que outras oportunidades surjam.
Mónica Reis
Texto com muito significado e sentido.
Na realidade eles querem o que todos queremos ser livres, felizes e únicos.
Únicos somos, nós e eles, felizes e livres isso é mais dificeis. As leis, regras estao longe de serem perfeitas e deveriam ser mudadas sempre que necessário.
E algo que muita gente desconhece é que, o que nos sentimos reflete neles e seria alvo de reflexão para os donos o porque de certas atitudes do sei animal de estimação. Hoje sei o quanto prejudiquei a minha cadela e não foi a falta de amor, comida da melhor, veternario e liberdade, mas assim eu me autoconhecer. Começar um caminho que de repente ela deixou de se automutilar. Lhe pedi perdão pela minha ignorância e agradeço o ensinamento. Somos dois seres melhores e com caminhos para percorrer pelo tempo que nos for permitido. Gratidão pelo que fazem