A pastora alemã

Era março e o sol, que acordara depois do meio-dia, fazia sentir o seu calor vespertino.

Ela apareceu-lhe à porta. Algo agitada, subia e descia a rua, continuamente, como quem está perdida ou procura algo. Quando o cansaço chegou, ela deitou-se e aí permaneceu. Dormitou, ainda que inquieta. Ele já a notara. Da janela, acompanhou as suas cíclicas viagens, rua acima, rua abaixo, olhares prescrutores, focinho investigador, tudo em vão. Velou-lhe o sono, espreitando de quando em vez. Viu que se mantinha no mesmo lugar.

 

Ela parecia aguardar um acontecimento, algo que lhe desse uma ideia do que fazer a seguir. Esperava.

Já ele, ansioso, debatia-se com a vontade de a trazer para dentro. Sentia que o devia fazer, num impulso, mas não saberia lidar com o depois. Não estava preparado.

 

Algumas horas passaram até que, depois de ter andado repetidamente de um lado para o outro, dizendo a si mesmo que era uma solução momentânea, lhe abriu a porta. Ela, uma pastora-alemã jovem, não mais do que um ano de idade, olhar meigo, entrou e refez-se da fome e da sede que trazia consigo. Dormiu mais um pouco, desta vez no interior da casa, sobre um pano improvisado de cama.

 

E ele, enquanto se repetia, como que a convencer-se, que era só hoje, tirava-lhe fotos, gravou vídeos que divulgou pelas redes sociais. Escreveu para o mundo: Encontrou-se. Procura dono ou novo dono. Telefone. Os comentários foram muitos, se teria chip, se seria o cão que desapareceu numa terra próxima, se ele ficaria com ela, que ele deveria ficar com ela. Solução, nenhuma. Fábio sofria. Revivia a história, de há uns quantos anos, quando o Shrek lhe apareceu também no caminho. Ficara com ele por uma década.

 

Olhava-a enternecido, vendo-a dormir. Muitas perguntas lhe passavam pela ideia, de onde viria, teria fugido, ter-se-ia perdido, teria sido abandonada, seria procurada?

Algumas horas depois, deixando-se vencer pelo medo, chamou o canil. Não podia, não tinha condições de se lançar de novo ao sofrimento. Ainda hoje as memórias eram dolorosas.

 

O universo às vezes faz das suas. Irónico, ainda que muitas vezes certeiro, obriga-nos a confrontar os nossos medos. Faz-nos ficar de frente com aquilo que mais tememos, obriga-nos a reagir. Fábio queria fugir ao tormento, mas não conseguiu. Ao pretender proteger-se duma nova dor, duma nova perda, não conseguiu ter outra reação que não o choro compulsivo quando a vieram buscar. Chorou, agitando-se, como um menino. Pelo seu cão, por si, e agora também por ela.

 

O Shrek partira há quase 2 anos. Tivera que ser eutanasiado, por conta duma doença que não tinha melhoras e lhe tornava a vida incomportável. Posição difícil para um dono, fazer de Deus e medir-lhe o ponto de viragem entre a boa vida que tinha e o perpetuar da condenação à dor. Parecia que as (in)decisões o perseguiam. Percebeu contudo que insistir na vida do Shrek era um acto de egoísmo, acedeu ao seu adormecimento. Sendo certo o seu penar, inevitável e certo, aliviava o do seu cão. A morte às vezes toma estranhos contornos de amor. Contudo, nem isso lhe sustinha o pesar.

 

Nos dias que se seguiram à ida para o canil, Fábio chorou. Muito. Debateu-se com as suas dores, a revisitada e agora esta, tão próxima, tão real.

O tempo não lhe tinha trazido a paz. A duração da vida humana, no seu curso natural, abarca algumas vidas caninas. Sentia-se impreparado para voltar a entregar-se. Sabia que em questão de uma década ou pouco mais, o fim voltaria a ser equacionado, de forma natural ou imposta. De novo o sofrimento, de novo a perda. Inevitável, de qualquer das formas.

 

E no entanto, não parara de pensar nela. Ligou para o canil. Foi visitá-la. Ia só visitá-la, dizia. Mas a semente já estava plantada no seu coração.

Tirou novas fotos, mandou aos amigos. A irresistibilidade impunha-se. Ligou a uma amiga. Às vezes precisamos que nos digam, traduzam em palavras, aquilo que precisamos ouvir. Não é que não saibamos o que queremos. Sabemos, haja o medo que houver, mas ocasionalmente precisamos que alguém desperte em nós, que faça sobressair aquilo que o receio tende a apagar. O tal empurrãozinho.

 

Ela sorriu, sabia-o rendido à menina. Sabia também que o tempo, aqui produtivo e simpático, estava a fazer o seu papel, deixando-o cada vez mais impetuoso e cada vez menos temeroso. E quando ele lhe disse, sempre preso à cautela, que não estava preparado, ela perguntou-lhe se algum dia estaria, e o que seria isso de estar preparado? O Shrek seria sempre o seu cão, mas com tantos animais a precisar, com aquela cadela a precisar, e com o amor que já lhe tinha, havia um final feliz à espera de acontecer. Houvesse coragem.

 

E então algo aconteceu.

As pessoas quando já tentaram tudo e nada parece acontecer, poem nas mãos de Deus os assuntos. Deus, Universo, o que queiram chamar. Costumo achar que é uma desresponsabilização da própria iniciativa. Mas desta vez soube-me bem ver o acaso trabalhar de forma tão clara. Após uma quarentena que se impôs, Fábio foi buscar a menina. Chamou-lhe Nara.

 

Sandra Ramos

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