Tocou-lhe no braço com a pata e queixou-se baixinho. Raspou, raspou, raspou. Deitou-se aos pés dela. Adormeceu. Bebeu água. Tinha fome. Mas ela não se mexia. Subiu para o sofá e deitou-se no colo dela. Ganiu. Com a pata, arranhou-lhe a perna, mordiscou-lhe o braço. Mas ela não se mexia. Não conhecia o tempo, mas quando os encontraram, ela estava morta e ele já não tinha forças para se levantar.
Às vezes ainda acordava a uivar.
Já não acontecia muito, porque a solidão nem sempre lhe enchia o corpo, os fantasmas nem sempre se hospedavam no seu cérebro. Na associação, sentia-se acompanhado. Havia outros cães perto dele. Não se viam constantemente, mas sabiam-se, eram camaradas nas horas altas da noite quando ladravam, choravam, partilhavam o desespero do abandono, e eram-no também nos passeios, nas corridas, na brincadeira. Tinha ainda as vozes dos humanos que o cuidavam, todos os dias havia voluntários cheios de miminhos nas mãos, de coçadelas nas orelhas que eram só para ele.
Mas, às vezes, ainda acordava a uivar.
Levantava-se entusiasmado com cada novo cheiro que entrava na associação. Muitos eram de crianças. Era fácil percebê-los: os cães identificavam logo os passos da esperança, da inocência, o ar parecia estalar, ficavam desejosos de se tornarem especialistas na gargalhada dos humanos pequeninos. Só que as pessoas passavam por ele e mal olhavam. Talvez fosse invisível. Talvez fosse invisível porque estava cheio de medos no corpo e tremia muito, porque lhe doíam os ossos, porque tinha os pêlos branquinhos e os olhos chorosos.
E porque, nalguns dias, ainda acordava a uivar.
Mas também abanava a cauda com expectativas, ainda era capaz de alegria. Quando passavam por ele sem lhe dar atenção, a cauda frenética parava. Não entendia que nem todos eram capazes de abraçar uma felicidade com artroses, com condições, com prazo de validade curto. Não fazia mal. Ele deitava-se. Esperava. Tinha a certeza de haver amor reservado para ele nos abraços dos voluntários. Tinha a certeza. E eles apareciam sempre, todos os dias. Por isso abanava muito a cauda, sabia abanar tão bem a cauda! Como se adivinhasse que um daqueles abraços o levaria, em breve, para casa.
Rosa Machado