Dália e Pip

Amanheceu na serra. O sol, primeiro a medo, depois ganhando embalo, inicia a escalada pelo céu e vence o torpor da névoa matinal que ainda se demora por ali. Por entre o telheiro tosco, inunda os olhos de Dália, que ainda dormita, aninhada com o seu filho Pip. Partilham uma mesma cama, como sempre partilharam a vida, desde que ele existe. Dália abre os olhos e fica a vê-lo dormir, o seu menino, agora maior que ela. Pip dorme profundamente, mexendo as patas a tempos, latindo baixinho. Ela olha-o embevecida. O sol vai rodando, e Pip abre agora os olhos, devagar, descendo do mundo do sono.

 

– Bom dia, meu amor. Dormiste bem? Estavas a sonhar?

Pip ajeita-se na cama, esticando-se em direcção ao sol. Olha a mãe, ainda de olhos semicerrados. Sorri.

– Bom dia, mamã. Sabes com o que sonhei? – e encolhe-se de vergonha – Sonhei com a Miosótis.

– Essa não é a miúda nova que entrou há dias?

– É pois. Gosto dela. Ela disse-me que tenho uma linda cor ruiva.

– És um malandreco. A miúda é gira, mas não sei se é cadela para ti. Não é qualquer uma que leva daqui o meu filhote, ora essa.

– Ó mãe…deixa-te lá de coisas. E tu, dormiste bem?

– Sim, e olha, também sonhei. Nem imaginas … sonhei com uma casa para nós.

– Uma casa? Esta casa?

– Não, meu amor, uma casa a sério.

– Não estou a perceber…esta não é a nossa casa, não é uma casa a sério?

– É. Mas não é…. Sabes que aqui somos muitos, não é? Imagina o que seria termos uma casa só para nós. Nós dois e alguns humanos.

– Mas mãe, aqui também temos humanos. A Elsa que limpa a nossa casa e nos põe água e ração, o Fernando que anda sempre aí a melhorar o tecto e as paredes e os armazéns. Os voluntários, as madrinhas e os padrinhos que vêm cuidar de nós.

– Aqui onde vivemos é um abrigo. Eu sei que há casas onde vivem cães que têm donos.

– Assim uma casa pequena?

– Sim, imagina, assim como se fosse aqui estas 3 ou 4 boxes, e viveríamos nós 2 e alguns humanos adultos e talvez uma ou duas crianças.

– Isso existe? Como sabes essas coisas, mamã?

– Quando vamos ao veterinário oiço as conversas que os donos dos cães têm. E em vez de terem 400 cães, têm 1 ou 2. E fazem-lhes festas, e levam-nos a passear de manhã e à noite, e às vezes vão passear de carro. Alguns até, imagina, dormem na cama dos humanos. Deve ser bonito, olha lá dormirmos na cama dum homem barrigudo que ressone… ahahah.

– Ahahah, olha agora… já não basta ali o vôvô Brutus…eheheh, é um labrador mesmo barrigudo, e ronca a noite toda. Mas a Elsa não é a nossa dona?

– A Elsa é uma dona provisória. Não sabes o que significa? É nossa dona até que arranjemos uma casa. Alguns não chegam a consegui-la, somos muitos animais abandonados e sem dono, e as pessoas que gostam de nós já têm outros animais e não podem ter mais… então, se o futuro não vier melhor, pelo menos aqui temos comida e uma caminha.

– Fico triste quando dizes que nem todos arranjam casa. Eu gosto de estar aqui e brincar no pátio, e ladrar ali aos barulhentos da box em frente. Claro que os voluntários têm muito trabalho, limpar, arranjar as camas, lavar as mantas, pôr comida e dar os medicamentos, mas são simpáticos. Tu não gostas de viver aqui, mamã?

 

Dália aconchega-se em Pip, que é agora o dobro do seu tamanho. Pip nunca conheceu outro lugar. Quando Dália entrou, grávida, milagre da gestação num corpo que nem a si se sustinha, trazia consigo a fome, a sarna que a deixou sem pelo, mas sobretudo a dor de ser ignorada pelas ruas, sentindo o olhar de nojo nos humanos que a olhavam. Era um esqueleto, a pele de um cinzento pardacento, coçando-se até à ferida, encolhendo-se como se quisesse esconder-se de si própria e sumir duma vida que só lhe trouxe dor.

Olhavam-na, alguns com piedade, mas sem que esse sentimento os fizesse agir ou procurar ajuda. Outros, preocupados com a limpeza paisagística, alegavam a necessidade da sanidade urbana. Poucos a olharam nos olhos fugidios. Muito menos tentaram salvá-la. Fugitiva e arredada, reação condicionada a maus tratos e sabe-se lá que tempos vividos, foi apanhada numa armadilha. Pensou que era o seu fim. Talvez fosse melhor, acabara-se a dor e o desconforto. Desistiu de viver. Mas a natureza revelou que em si cresciam 4 cachorros, e como a esterilização seria um risco maior do que deixar a gravidez progredir, Dália foi cuidada, e a vida nasceu. Só Pip sobreviveu.

 

– Mamã, isso que dizes de andar de carro sem ser para ir ao veterinário é verdade?

– É pois. Eu confirmei com um dos cães que estavam no consultório quando o dono se distraiu. Imagina, vão passear a outras terras e vão ver o mar, sabes, muita água e areia.

– Tu já foste?

 

Dália só conhecia a rua onde fora abandonada. Tem uma vaga ideia de alguém que lhe tenha dado comida, mas deixava-a sempre a monte, com outros cães, entre brigas e lutas, que os cães também têm as suas opiniões e nem sempre estão de acordo. Veterinário só soube o que era quando foi apanhada e quando foi vista e apalpada, medicada para a sua extensa doença. Mas isto Dália não lhe conta. Não quer que o filho saiba que já viveu o inferno.

– Não, sabes que sou muito caseira. Mas olha, se um dia tivermos uma casa e um dono, quem sabe?

– No outro dia no pátio da brincadeira alguém disse que o Joaquim foi adoptado. Isso é o quê?

– Foi? A sério? Fico muito contente. Isso significa que ele agora tem um dono e mora numa casa. E que deve ter uma cama só dele, ou um terraço, ou até quem sabe, um campo de oliveiras para passear. E uns humanos só para si. A mãe e os irmãos dele é que devem ter saudades dele.

– E ele já não vai voltar para cá?

– Se tudo correr bem, não.

– Mas olha que ouvi dizer que o Júnior foi devolvido. O que aconteceu?

– Não sei exactamente, mas sei que às vezes as pessoas não têm muita paciência para os animais, e esperam que em dois ou três dias se adaptem aos seus hábitos. E quando isso não acontece, muitas vezes desistem de nós e voltam a trazer-nos para o abrigo.

– Como sabes tanto, mãe? Eu sei que tu falas muito ali com a Roxette, senhora já de alguma idade, é ela que te conta essas coisas?

– Vou ouvindo aqui e ali. Como sabes aqui não há sossego, quando começa um a ladrar, começam todos, muito se fala neste canil.

 

Dália levanta-se e come a sua ração, ali disposta numa panela. Comida vai havendo. Ouviu qualquer coisa de campanhas de supermercado. Deve ser um sítio onde os humanos vão buscar ração. Pelo menos é o que reparou, quando os voluntários falam que vai haver campanha, no dia seguinte o Fernando chega com o carro cheio de sacos de ração, que ele e os voluntários arrumam no armazém.

– Mãe, porque é que a Anita tem um pano na barriga?

– A Anita foi fazer uma esterilização. Significa que não poderá ter mais bebés. Lembras-te que ela entrou com cachorrinhos?

– Sim, mas foram adoptados, eu vi.

– Pois, mas a Anita ficou para trás. Normalmente as pessoas só querem bebés, e a mãe ficou no abrigo. Mas assim temos a certeza que não haverá mais bebés em risco de serem abandonados, e a comida chegará para os que aqui já vivem.

– Não deve ser fácil arranjar comida e tratamento médico para todos nós, pois não mãe?

– Pois não, meu amor. Por isso é tão importante que as pessoas percebam que precisamos delas para viver.

Dália olha o filho e fica feliz por ele nunca ter conhecido a rua. Pip mantêm em si a inocência e a espontaneidade das crianças que não conheceram o perigo. Quando um humano chega, Pip vai, primeiro a medo, mas rapidamente se dá às festas, encavalitando-se nas ancas ou no rabo, mostrando-se disponível. Mas menos, bem menos, do que um cachorro comum. Talvez se questione por que a mãe fique de pata atrás, ainda encolhida, no fundo da box, ou escudando-se no filho, mais arriscado. Talvez seja por o ver cada vez mais confiante nesse contacto com as pessoas que ela própria se vá dando também ao contacto, se bem que com reservas imensas.

– Mãe, achas que hoje é dia de vir a nossa madrinha?

– Parece-me que sim… gostas dela?

– Gosto. Ela é fofa, e traz sempre paté.

– Sabes que eu acho que ela nos quer levar para casa dela.

– Achas, mesmo? Então?

– Olha, vem cá todas as semanas, traz coisas boas, faz-nos festas. Hum…

– Eu gostava, mamã. Achas que é para breve?

– Não sei… acho que ela tem uma cadela velhota que tem a mania que é dona da casa. E depois, não percebi bem, mas o Fernando falou em qualquer coisa de ir ganhando confiança…. Sabes que os humanos são assim um bocadinho complicados.

– Mãe, olha quem vem lá, é ela, é ela!

 

Empinam-se ambos nas patas traseiras, saltitando enquanto tentam vê-la por entre o gradeamento. A agitação é crescente, e vão latindo em crescendo, como se a chamá-la. Dália e Pip alegram-se com a sua chegada, impacientes por que ela abra o ferrolho que os separa, e entra enfim na sua pequena box.

A Elsa diz que eles gostam dela porque a madrinha tem cheiro de paté. Mas isso é brincadeira. A madrinha tem é um irresistível e maravilhoso cheiro de amor.

 

Sandra Ramos

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