Um passeio com as cadelas, Rita e Raquel, com r de inicial por uma mera coincidência, veio a trazer para casa mais um morador satisfeito. Era um domingo, ao fim do dia e nada fazia prever que a vida ia levar uma reviravolta. Não tinha previsto adoptar mais nenhum animal mas quem sou eu para decidir o que me ultrapassa? As duas fofas que passeavam comigo eram doces e nunca me tinham dado trabalhos. Tudo mudou desde esse dia.
Encolhido num degrau de um prédio estava um cão que mostrava os dentes e rosnava. Tudo aquilo era medo e não raiva mas isso ainda não sabia. Várias pessoas tentavam acalmá-lo mas ele não cedia e estava de pedra e cal, irredutível na sua postura, como que colado ao chão. Por mais tentativas que fossem feitas ele não se aproximava nem baixava o tom da ameaça.
Aproximei-me dele e pareceu-me ver uma espécie de sorriso. As “meninas” foram o bálsamo para a cura. Calou-se e ficou sentado muito direito no degrau. Cheirava tão mal que dir-se-ia que tinha saído do lixo. Rapidamente percebi que era mesmo verdade. Alguém o tinha colocado num contentor do lixo e ele saltou quando foi aberto. Uma maldade das grandes que ficou sem castigo.
Na esperança de ter dono e estar perdido, acabei por o trazer para casa. Foi recebido amistosamente pelos gatos que o olharam um pouco admirados. Nada de conflitos nem juízos de valor, apenas acolhimento e simpatia. Claro que não tinha chip e por isso uma foto dele esteve nas redes sociais, durante um mês, em demanda, para quem o pudesse procurar. Não aconteceu. Ao fim de um mês passou a oficial: tinha donos.
Tornou-se a minha sombra e o meu companheiro inseparável. Ruivo e de olhos verdes, muito humanos, todos se encantavam com a sua beleza e meiguice. Ainda muito desajeitado, aproximava-se das pessoas, bruto como as casas, a pedir festas. Um fofo gigante e inofensivo que só queria dar amor para todos. De tanto o gabarem tornou-se vaidoso: sabe que é bonito e coloca-se em posição para as fotos e festas. Um convencido.
A fase seguinte foi de bradar aos céus. A mudança dos dentes é sempre complicada numa criança e num cão ainda pode ser mais dramática. Além das ventosidades que expelia, que mais pareciam a guerra biológica, nada podia ficar ao seu alcance pois certamente que seria “personalizado”. Era verão e felizmente que se podiam abrir as janelas sem correr o risco de morrer de frio. Caso contrário o cheiro era nauseabundo.
Chegou ao estado adulto físico mas o mental nunca será atingido. Tem dez anos mas porta-se como um cachorro. É um eterno bebé que me olha com tanta ternura e amor que é impossível resistir. Na sua fraca cabeça é pequeno e quer colo a toda a hora. Impossível satisfazer essa condição, mas ele bem tenta e não dá mostras de desistir. O que não gosta, vade retro satanás, é dos contentores do lixo, que o trauma nunca foi superado.
Certo domingo começou a queixar-se e pensei que era uma mariquice qualquer. Quando olhei bem para ele, verifiquei que tinha o focinho tão inchado e que lhe custava a respirar. Tinha sido picado por uma abelha e a reacção foi tão intensa que teve que ficar internado. Tornou-se um study case. Ainda hoje foge destes bichinhos e dos primos e irmãos. Aprendeu a lição da pior maneira possível.
Como é um doido saudável, o pêlo acaba por trazer sempre outros bichos para casa. Gosta de dar guarida aos sem abrigo: eu entendo-o perfeitamente. Uma vez havia lesmas e caracóis, outra, outros bichos que nem conhecia. O pior foi quando um pedaço de qualquer coisa aguçada lhe perfurou o tímpano. Foi novamente internado até que ficasse bom. E ficou, apesar de ter levado bastante tempo. Sempre um querido.
As primeiras férias foram épicas e inesquecíveis. Carro vomitado é sinal de vida mas uma enorme alegria colmatava as falhas que pudessem aparecer. Sempre muito comunicativo fazia questão de cumprimentar a todos e aprendeu a ladrar em várias línguas. Elas já estavam habituadas e, por isso, foram as suas mentoras eficientes e impecáveis. Depois ganhou o vício de viajar e porta-se sempre conforme lhe apetece. É modelo fotográfico e gosta.
Desenvolveu um gosto especial por vacas e sempre que as avista faz questão que lhes mandar uns piropos: ó miúda sexy eu fazia e acontecia e mais isto e aquilo, qual humano machão que solta a verborreia. Mas esta conversa é de longe, assim como os trolhas das obras que prometem delírios sexuais a quem passa na rua. Só que na presença a coisa muda de figura e deixam de ser heróis, como este cão. Nem olha para elas.
Em certa altura senti-o triste e decaído. Assustei-me. Estaria doente? Seria impressão minha ou havia algo que não batia certo? Atirava-se para o chão e o seu olhar ficou mesmo estranho e amargurado. Fiquei seriamente preocupada, mas pensei que era uma questão passageira. Cada dia que passava estava mais cabisbaixo e melancólico. Preocupou-me. A gata, sua amiga desde sempre, acalma-o, com massagens que o levam a relaxar e dormir. São inseparáveis.
Um dia descobri um aspecto estranho no meu corpo e tive logo a certeza que era grave. Começou a minha via sacra de médicos, clínicas, exames com nomes complicados e agulhas e tudo o que se costuma dizer que não se quer. No final do primeiro round veio a confirmação das minhas suspeitas. O estranho é que eu estava no hospital e o cão em casa. Por essa mesma hora, suspirou e ficou tão abatido que se chegou a pensar que estava desmaiado.
Escusado será dizer que foi o meu escudo protector nos dias que antecederam a cirurgia. Não foram muitos pois a situação era urgente mas ele olhava-me com tanta devoção e cuidado que era impossível não ficar enternecida. Era o meu guardião das más energias e da negatividade. Durante o internamento recusou-se a comer e chorava a noite inteira. Como é que eles sabem?
No regresso fui recebida como uma rainha e ele não saía dos meus pés. A tristeza que se instalou não desapareceu apenas ficou mais leve e disfarçada. Transformou-se no meu barómetro. Pode parecer inventado mas o assunto é muito sério. Ele soube perceber onde estava a maleita e tentou curá-la. Apontava para o local exacto que, depois, estava vazio. Verdade seja dita, os gatos também entenderam.
Mais tarde voltou a entrar numa espiral de emoções fortes e difíceis de entender. Ele sabia, apesar de parecer que é um tonto enorme e bonito. O seu choro, baixinho, indiciava que a sua alma canina estava atenta. Tinha razão. Mais uma vez estava a ser atacada pelo inimigo e ele, o meu cão atoleimado, alertou-me para isso. Quem diz que eles não sabem?
Não foi tão grave como poderia parecer, mas ele esteve sempre a meu lado, com a sua cabeça peluda deitada no meu colo e a pedir festas. Será um eterno bebé e não larga os bonecos. E o menino é fino porque sabe bem o que é a beleza e aprecia-a com intensidade. Olha para tudo como se fosse um expert na matéria que domina com facilidade. Tem um apurado sentido estético e rejeita o que não lhe agradava com firmeza.
É um doce gigante. Até pode provocar diabetes de tanto mel que liberta! Chora como se fosse uma criança, pede festas e colo pensando ser pequeno e é o maior defensor do carro, o seu território preferido e seguro. É um pouco como certas pessoas que se sentam em frente a um computador e são uns heróis. Aí estão seguros porque, na realidade, encolhem-se e tentam passar sempre por entre os intervalos da chuva.
Nunca cheguei a saber a sua origem mas isso que importa? Aquela porta será a sua maternidade e agora está bem entregue. Bigodes cortados, aquela ideia popular de que perderia o tino para voltar para casa, talvez tenha funcionado. Já vinha ensinado e quem o abandonou deu-lhe um futuro melhor, tornando-o o oposto ao intencionado. É um cão grande, com estilo e garra, um valentão das dúzias, daquelas de trazer por casa.
Interrogo-me, tantas vezes, como teria sido a sua vida se eu não estivesse ali a passear as minhas meninas. Sei que muitos tentaram dar-lhe a mão mas o certo é que eles é que nos escolhem e ele escolheu-me a mim. Estou-lhe grata por tudo. Funciona melhor que certos especialistas e não se advoga o direito de superioridade. É assim e ponto final. Um abandono falhado, ainda bem, que teve um final feliz e que desejo que se prolongue por mais anos, como nas histórias infantis e de encantar.
Se a gata, a Sara, é a terapeuta do cão, a que o sabe domar e trazer de volta o menino cão doce e meigo quando se enfurece, ele é o meu escudo terapêutico, o guarda costas de pêlos que não permite que alguém se aproxime sem ser conhecido ou convidado. Não faz mal a uma mosca mas a sua corpulência, com madeixas californianas naturais e dentes perfeitos, assusta os incautos e desprevenidos. Como não se amar desmesuradamente este ser?
Margarida Vale
Sem palavras!!
De lágrima no olho….lindo
Parabéns Margaria, é linda a história, muito bem escrita.
As vidas não se cruzam por acaso, e o amor aparece-nos de várias maneiras. Os patudos são seres incríveis carregados de ensinamentos que só os humanos mais sensíveis as compreendem.
Felicidades e muita saúde que o vosso caminho seja longo e sempre juntos.
Lindo comovente têm o dom da comunicação Parabéns por enfrentar a vida com essa atitude. Adorei 🤗