Não há fuga da nossa humanidade

A importância que os animais de estimação têm nas nossas vidas nem sempre foi tão elevada. Mesmo sem fazer pesquisa na história, muito facilmente olhando para trás, consegue-se fazer uma análise da evolução do papel dos animais na nossa sociedade. Ora vejam se concordam?

O início da relação entre o Homem e o animal baseou-se na cadeia alimentar, quem come quem. Primeiro éramos as presas e depois passámos a ser os caçadores. Então, a  dinâmica da relação com os animais passou a ser funcional. Esta relação homem-animal restringe-se ao serviço que os últimos prestavam aos primeiros: como animais de caça, para lavrar as terras, como forma de transporte, como recurso económico, etc.

Pode-se dizer que, desde cedo, existe uma bem distinta hierarquia entre homens e animais. Os animais serviam os nossos propósitos e, caso não servissem, eram dispensáveis, descartáveis. Não viamos nos animais características e capacidades que fossem para além da resposta aos nossos propósitos e interesses práticos.

 

Mas, a determinada altura, sem precisar quando, houve uma mudança de perspectivas. De repente os animais começaram a entrar nas casas, nos quartos, nos espaços íntimos dos homens, tornaram-se necessários para algo tão simples como, prestar companhia. Com esta mudança de posição começaram a apurar-se raças, os animais de estimação tornaram-se objetos de ostentação e sofisticação em alguns casos (ainda hoje existem raças de animais associadas à realeza, por exemplo, os corgis em Inglaterra) mas, principalmente, começou a ser comum, banal, possuir um animal dentro de casa.

No entanto, mesmo havendo cada vez menor distância física entre o animal e o seu dono, a hierarquia entre ambos mantinha-se bem distinta e ainda havia um interesse a ser servido, os cães e os gatos existiam para não deixar os seus donos sentirem-se sós, para suportarem a solidão, a falta de afeto, que o Homem ia sentido. 

E foi assim que os animais começaram a assumir um papel de maior relevância emocional e a entrar nas dinâmicas familiares. Particularmente quando as dinâmicas, entre os próprios humanos, se começam a deteriorar. As relações humanas, hoje, estão cada vez mais complexas. As pessoas vêem-se cada vez mais isoladas, incompreendidas, o que acarreta para os cães e os gatos, que ocupam as nossas casas, um novo propósito. De repente percebe-se que a hierarquia se esbateu e os animais que nos acompanham fazem parte das relações emocionais que temos. Tornam-se parte essencial para o nosso bem-estar, percebemos as suas capacidades para nos entender, aceitar sem julgamento, de nos amar de uma forma que os próprios humanos têm dificuldade em fazer. Os animais não são cruéis, não cobram mais do que dão, não são injustos. Preenchem-nos, ensinam-nos tolerância, paciência e amor incondicional.

Quantas vezes já ouviram, ou preferiram a frase “gosto mais de animais do que pessoas”? Muitas, com certeza, porque os animais na sua pureza e honestidade, conseguiram ocupar o lugar vazio que as desilusões com a raça humana nos vão deixando.

 

E, gradualmente, tornou-se cada vez mais comum ter um animal de estimação, tão comum que já nem se questiona o porquê de arranjar um, assume-se que é senso comum. Quem não quer ter um cão na sua vida? É a norma. Aliás, estranho é ouvir alguém dizer que não quer um animal em casa. Como não? Os animais completam-nos, certo?

O problema surge quando esta banalidade entra em desequilíbrio entre aquilo que o animal precisa e aquilo que ele pode dar. Não interessa que ele precise de cuidados, não interessa que tenha que ser treinado, que precise do seu espaço, de tempo para crescer. Importa é que fique bem nas fotos, que dê algum estatuto (sim, as raças são ótimas para isso), que façam as pessoas pensar que os donos de animais são pessoas sensíveis porque devem gostar de animais…

 

Só que não! Quem adquire um cão a pensar mais no ganho que este vai trazer do que nos sacrifícios que vai ter que fazer por ele, não está preparado ou capaz de ter um animal. Nesta dinâmica só se recebe o lucro quando se dá em troca. Se não, voltamos atrás no tempo e os animais não passam de objetos animados que nos são úteis enquanto nos for conveniente, e quando deixam de nos servir, vão para o lixo.

 

E eis o porquê de toda esta narrativa. Os animais que, nos dias de hoje depois de tudo o que já vivemos e aprendemos com eles, por eles, vão parar ao lixo – literalmente! Ou são abandonados à sua sorte, sem defesas e recursos de sobrevivência. São descartados, maltratados… As histórias repetem-se e repetem-se e por isso os exemplos reais têm que ser  expostos para ilustrar este flagelo que existe na nossa sociedade, a mesma que se diz tão evoluída e humana.

 

Valentino

Encontrado em sacas no lixo, quase sem vida, cruelmente atacado e violentado por quem dele devia cuidar. Terá sequelas para a vida.

Disney

Quando foi resgatado da casa onde vivia com os seus 6 irmãos, o Disney tinha sido alvo de negligência extrema por parte da sua dona. Foi de tal forma brutal, os maus tratos sofridos, que não sabia andar, comer, beber, receber festinhas. Pode-se dizer que não sabia o que ser, limitava-se a existir e respirar.

Marley

Vivia trancada num galinheiro até ser resgatada. O estado em que se encontrava era tão precário que a levou a desenvolver mazelas físicas que nunca mais vai perder. 

IpponNakitaYoguiPintasScoobyMickeyChicoGirassolMila e Heidi

Estes patudos têm em comum o facto de terem sido largados na rua, ninguém sabe como lá foram parar. Andavam perdidos, indefesos, alguns mal se deixavam tocar e cuidar, tal era a desconfiança dos humanos.  

Poppy e Oliver

Graças a uma denúncia e após uma rusga conseguiram ser salvos dos donos que tinham, e fugir de uma vida de negligência e abuso.  

Estes nomes de animais reais, de cães que neste momento se encontram para adopção, são uma pequena percentagem das muitas histórias idênticas, e às vezes mais horríveis, dos animais que chegam aos canis e associações.

 

Felizmente, para estes patudos, hoje estão protegidos, cuidados, e reabilitados na sua fé nos humanos, prontos para aceitar novos donos e novas famílias que os incluam de forma positiva e que honrem toda a história que a relação homem-animal possui, história essa que serve para unir as duas espécies num laço de igualdade, bondade e respeito.

 

Estas perspectivas temporais são importantes para nos revermos e entendermos os passos percorridos no caminho que nos trouxe onde estamos hoje. Há muito realizámos que os cães (e gatos) não seriam só seres automatizados e sem alma, como diria Descartes, mas sim seres capazes de sentir por si e promover emoção em nós. O facto de mesmo assim, ainda haver pessoas capazes de esquecer – ou ignorar – o elo incalculável que existe entre os animais e os seus donos, tem que nos fazer reflectir, enquanto sociedade, no que há de errado. O que se passa com a nossa capacidade de empatia? Porque está mais que percebido que de falta de empatia os animais não sofrem, é uma das muitas lições que nos podem ensinar.

E, em conclusão, para cairmos ainda mais em consciência de que, enquanto espécie humana, ainda temos muito para crescer e aprender com os animais, não pensemos que a crueldade para com os animais se resume a um grupo específico de pessoas, grupo esse com o qual até não nos identificamos pela distância cultural, moral, que nos separa. Lembremo-nos antes que a crueldade para com os animais também é exercida por quem se senta nas cadeiras do Tribunal Constitucional, por quem tendo o poder de criminalizar os atos que  aqui foram descritos, coaduna com eles através da impassividade, deixando que estes crimes permaneçam a acontecer de forma impune.

 

Tentar fugir da nossa responsabilidade enquanto humanos, porque não nos identificamos com as pessoas que maltratam e abusam dos animais, não é mais concebível. A consciência tem que ser generalizada, a narrativa tem que ser alterada num esforço conjunto da nossa sociedade, da nossa humanidade. Todos possuímos em nós a força, a oportunidade, para mudar os passos que nos levam neste caminho. Todos temos a capacidade de fazer com que esta história entre Homem e animal, seja cada vez mais nobre, pura e feliz.

Mónica Reis

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Um comentário em “Não há fuga da nossa humanidade

  1. Excelente artigo aqui está tudo dito. Ter um animal é cuidarmos dele até fim da sua vida. É pensarmos que ele precisa de cuidados (comer, beber água, passear, ser treinado, ir ao veterinário, etc), que precisa do seu espaço, de tempo para crescer, ser amado e feliz. Dá despesa, dá trabalho, claro que sim, mas quem ama incondicionalmente um animal está preparado para o ter e receber na sua vida como um membro da família. Pensem bem antes de terem um animal só porque sim….

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