Queremos esconder-nos destas verdades. Colocá-las num canto escuro e inacessível das nossas mentes que nos permita esquecer e viver numa paz simulada à força. Quando estas verdades se revelam, de forma tão gritante e impossível de não ver, sentimos vergonha, culpa. Sentimos porque há inevitavelmente uma identificação com quem comete estes atos, o que nos liga aos culpados é a “humanidade”. São humanos como nós e por isso em tudo o que é biológico, semelhante a nós, mas não queremos estar na mesma categoria em que estão estes “humanos”. E é daí que virá a vergonha… como é que alguém “igual a mim” consegue cometer atos tão atrozes e vis. Existe dentro de mim essa capacidade? Onde está o limite que nos separa e poderá algum dia ser quebrado?
A grande maioria de nós, e agradecemos a quem e ao que for preciso por assim ser, jamais poderia ser o atuante das ações que vos vão ser descritas de seguida. Avisamos que o que vai ser descrito é real, aconteceu, e não é para quem tenha uma dificuldade impossibilitante de lidar com a crua e pura maldade. Está o alerta feito, o que vem a seguir, caso decidam continuar, não é bonito.
A história aconteceu no Alentejo, mais precisamente em Campo Maior, não há muito tempo. Começa quando, ao passarem por um contentor de lixo, um grupo de rapazes percebeu que algo se encontrava no lixo, um gemido captou-lhes a atenção. Sendo a triste verdade que, de vez em quando se encontram restos de vida nos restos de lixo deixados por quem se desfaz das suas vidas, não deixa de ser pouco usual contentores de lixo emitirem sons. A decência fez com que prontamente procurassem o que num monte de coisas mortas tinha vida e respirava… ainda. Ainda porque se contrariou o destino. Ainda porque o fim que era esperado que acontecesse não ocorreu.
Encontraram uma saca, dentro desta outra saca e dentro desta outra ainda. Três sacas, de certo numa tentativa de abafar o que lá de dentro pudesse sair. Finalmente, dentro da última saca chegou-se à origem dos gemidos. Os olhos revelaram uma verdade que a mente teve dificuldades a entender. Ali se encontrava um cão, de grande porte, apesar da sua tão resumida existência. Estava entre a vida e a morte.
Não era suposto estar vivo, isso era claro como a água. Ter contrariado a vontade do “humano” que o colocou naquela situação e continuar a viver terá sido uma teimosia escondida dentro de si que quis negar a vontade daquele que tão claramente o amaldiçoou ou terá sido pura sorte? Os golpes na cabeça não terão sido certeiros, talvez milímetros de erro o tenham salvo, tal é mera especulação ou desejo que algo maior tenha lutado pela vida deste ser, já que outra força humana tão claramente lutou contra.
Sem saber que futuro teria, foi acolhido pela associação Amigos dos Animais de Campo Maior. Seremos factuais: 10 kgs abaixo do peso esperado, lacerações na cabeça e possíveis traumatismos, sarna, pulgas, carraças, fraturas antigas variadas pelo corpo e uma doença crónica (tratável).
A verdade é que tudo era incerto para esta pequena alma, mas os esforços foram feitos para que tivesse todas as chances de recuperar. Foi internado durante uma semana com observação cuidada para entender se sequelas iriam aparecer dos traumatismos na cabeça. Após o internamento, que revelou a força e a vontade de viver, foi alvo de muito carinho, atenção e cuidado.
É incrível que um animal que, certamente, nunca soube o que era ser cuidado, consiga reconhecer tão prontamente a mão que lhe traz carinho, cuidados, esperança.
Este texto começa por falar na dificuldade que temos em lidar com a crua verdade que humanos, tal como nós, tenham em si a capacidade de ignorar a existência e a merecida vida de outros seres, causando-lhes sem dó nem piedade imensa dor e, muitas vezes, a morte. Diz-se, com alguma leveza, que o que nos separa dos animais é a nossa capacidade de sentir e pensar. Esta história veio provar-nos que há lugares de escuridão, contextos perdidos, em que a personificação de “besta” e “humano” está claramente invertida. Nesta história, percebe-se perfeitamente onde reside a decência e onde reside a bestialidade, sendo que a última caminha em duas pernas.
A história do Valentino, só nomeado agora para que não seja esquecido o seu nome no meio de tanta atrocidade descrita, é uma história assustadora, sim, mas de muita esperança. Hoje o Valentino é feliz, convive com todos – humanos e animais – sem medo e sem rancor. Poderíamos todos aprender com ele a lição de resiliência e gratidão pela vida, mas só uma família terá a sorte de o chamar de seu e partilhar a sua vida com puro amor em forma de cão.