Pantera

Era um cão preto, grande e gordo que não tinha dono mas era de todas as pessoas. Ar simpático e sorridente fazia com que lhe dessem sempre comida, muita comida e o seu corpo foi-se desenvolvendo até ter a forma de um barril. Era tão cómico!

Como era brincalhão, todos lhe achavam graça e fazia amigos com facilidade. Não me recordo como chegou ao bairro mas instalou-se junto ao café onde todas as tardes os motoristas comiam tremoços e bebiam cerveja. Para ele sobravam as cascas, tão boas, salgadinhas e amarelas, bem como os restos de pão quando era dia de caracóis. Marchava tudo.

Uma das actividades preferidas dele era sentar-se em frente à escola secundária e esperar os seus amigos de duas pernas. Acompanhava-os a casa ou à paragem do autocarro e, depois de cumprida a tarefa, voltava ao seu poiso habitual. Uma rotina que até os lojistas conheciam. Outras vezes entrava no supermercado com eles e fazia as compras necessárias. Sempre cumpridor das regras.

Uma vez queria ir no autocarro que levava os alunos para a viagem de finalistas. Foi o cabo dos trabalhos para o convencer que tinha que ficar. Por vontade dos miúdos até os acompanhava mas a vida não funciona assim, o que é uma pena. Esteve dois dias desolado mas lá lhe passou a telha. Muito sentimental mas tão doce.

O que o caracterizava era o calendário e os horários. Como raio é que ele sabia tão bem as horas e os dias da semana? E o melhor de tudo é que tinha um calendário que sabia sempre onde havia festa e baile popular. Era vê-lo, com a boca aberta de satisfação, a andar muito pesado, de um lado para o outro, a ver se lhe pingava alguma coisa. Tinha sempre sorte. Ninguém lhe resistia e tornou-se “nutrido”.

Também estava a par dos jogos de sueca, porque aquela zona era fértil em velhotes e reformados de longa data. É difícil ocupar quem nunca soube ler nem escrever mas jogar às cartas é passatempo de livre aceso. Estava sempre sentado ao lado de um dos jogadores, como se percebesse alguma coisa do que se estava a passar. Ou como se estivesse a ver o jogo para depois fazer sinal ao adversário.

Uma vez vi-o na festa do Avante. A barriga arrastava pelo chão de tanta comida que lhe tinham dado. Chamei-o e ele ficou logo ali, a rir de boca escancarada, como quem diz: “estou que nem posso!” Sentei-me no chão, ao seu lado e estivemos assim, numa alegre e animada cavaqueira enquanto cantava o Sérgio Godinho. Estava a ver que o bicho rebentava.

O Verão era maravilhoso para ele. Eu só o via na zona mas sei que ele se esticava até outras paragens. Já fazia parte das histórias e do folclore de muitos locais, com nomes diferentes mas era ele. Tenho a certeza! Claro que não gostava de motos nem do seu barulho e corria que nem um desalmado atrás delas. Nessas alturas sentia-se um jovem elegante e ágil. E ria muito satisfeito com as suas acrobacias.

Quando era Inverno dormia junto ao café, que o dono falava com ele como se fosse um cliente de longa data, numa espécie de casota improvisada que lhe faziam. O certo é que o animal tinha hábitos bastante humanos. E era respeitado por todos como sendo um igual.

O período de férias escolares era uma tragédia para ele. Não havia gaiatos e percebia-se que ficava triste. Depois entendeu que era um rotina e animou-se com facilidade. Se eu ia às compras e ele estava disponível fazia-me sempre companhia. O mesmo se passava com outras pessoas. Era um cãopanheiro!

Havia um ringue desportivo onde se disputavam jogos importantíssimos do campeonato dos mais jovens. Aos domingos a assistência era forte e o mais acérrimo adepto era ele que acompanhava a bola com o olhar. Uma vez entrou em campo e esse jogo foi, com toda a certeza, o mais valioso. Andava atrás da bola como se fosse um entendido. Uma delícia!

Quem inventou os cães enganou-se no prazo de validade e tornou-o muito curto. Não se faz. Devia ter ido ao controlo de qualidade e ser refeito. Mas não. Ficou mesmo assim. E o tal dia que ninguém gosta de saber que existe chegou. O Pantera ficou a sonhar, para sempre, com jogos de futebol, com viagens de finalistas e campeonatos de sueca.

Tinha um ar sorridente, como se estivesse num local perfeito e bonito onde tudo podia acontecer. Talvez sonhasse com as festas onde tinha ido e com todos os gaiatos que acompanhou a casa. Foi um vazio enorme que ficou naquele bairro. Posso assegurar que o senhor do café até soltou umas lágrimas, muito duras e amargas, que homem é que é homem sabe o que é a amizade verdadeira. Mesmo que seja entre um humano e um cão que não era de ninguém mas enchia o coração de todos!

Hoje lembrei-me imenso dele. Voltei a passar na zona onde tudo se passou. O senhor já não tem o café e descansa das suas lides que lhe davam de comer e companhia. O local onde ficava o poiso do Pantera está vazio, mas apenas em termos físicos. A sua tão doce lembrança está viva e ainda o vejo a sorrir para mim antes de se levantar e me acompanha.

Os cães são seres especiais e é lamentável que vivam uma vida tão curta. Nenhum substitui outro e este era mesmo da fibra da boa. Os meninos que ele tanto gostava já têm meninos mais velhos do que a sua época. A vida circula e ainda bem. Tenho a certeza que lhes contam as mil e uma histórias que viveram em conjunto. São todas únicas e irrepetíveis, como a vida.

O Pantera era o terapeuta de serviço, o psicólogo que enxugava as lágrimas de tristeza e de desamores, o ouvinte dos mais velhos que se queixavam das dores nas cruzes, o árbitro dos jogos de sueca, o adolescente que curtia a música, enfim, o parceiro ideal para todos. Que sorte quem o teve e que bom é recordar a felicidade!

 

Margarida Vale

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