Que sempre permaneçam os sorrisos

Há momentos que definem a vida das pessoas. Quer seja por serem intensos, ou por serem singelos. Por serem traumatizantes ou por serem memoráveis. Mas todos nós, sem excepção, conseguimos evocar um ou mais momentos da nossa vida em que sentimos que houve um reset, um voltar ao início, onde quem somos claramente se separa de quem éramos.

O momento que aqui vos relato foi um desses momentos na vida desta família. Os laços que se criam entre os membros de uma família são inquebráveis, mesmo se essa família é criada não exclusivamente pela partilha de sangue, mas também pela partilha de sentimentos, emoções, vitórias, perdas, gargalhadas… muitas gargalhadas.

Este momento é um momento de despedida, o actor desta nossa história contempla o adeus, sabe que as pessoas que tanto ama deixarão de fazer parte da sua vida. Ele recorda os primeiros passos da pequena princesa, de como ela lhe mordia as orelhas achando que eram brinquedos, os gritinhos de alegria que ele lhe arrancava quando brincavam.

Não há sensação melhor no mundo do que adormecer, bem encostadinhos, e sentir a respiração dela, suave e ritmada, na sua pele. E quando a mão dela, pequenina e gordinha, caía em cima dele, num ato de possessividade carinhosa, então sim era o céu, o paraíso.

Ele volta ao presente, para entrar no futuro… quando ele for, quem as vai proteger? Pergunta-se… A pequena, não tão pequena mais, tem medo do escuro e da trovoada, mesmo passados tantos anos ainda o procura durante a noite para que ele lhe dê conforto. Vai sentir-se assustada e ele, bem… ele não estará lá para a fazer sentir-se segura.

E a mãe, sempre tão forte e carinhosa, a tratar de todos os que a rodeiam, cuida sempre com amor, mesmo quando se zanga. Tão forte, mas só ele lhe vê as lágrimas quando os sentimentos são tão grandes que transbordam todas as barreiras levantadas. É só ele que tem permissão para a ver nesta vulnerabilidade. E é só ele que consegue acalmá-la e fazê-la sentir-se amada, devolvendo-lhe a esperança na vida e a força para continuar. Depois de ele ir, quem a vai consolar e amar em todas as suas formas: forte e sensível, feliz e preocupada, zangada e vulnerável.

Esta partida é inevitável, todos sabem isso, apesar de durante meses ninguém ter querido aceitar esse destino. Durante as suas interações, este fim pairava sobre as suas cabeças, como uma espada prestes a dar o seu golpe final, mas ninguém queria olhar para cima… não eram mentirosos mas, nestes últimos dias, foram excelentes intérpretes de uma história faz de conta onde se acreditava que um milagre iria devolver-lhes a vida que estava ameaçada e que tudo poderia permanecer igual até sempre…

Elas não falavam no assunto e ele agia como se ainda fosse um jovem (ou tentava até onde o seu corpo cansado deixava). À noite, bem de fininho, o medo surgia aos três e a tristeza conseguia invadi-los ligeiramente, o suficiente para os fazer dormir com o coração pesado, dolorido. Mas chegando a manhã, os raios de sol dissipavam de novo os receios e começava o teatro. Até o dia que hoje vos relato, neste dia a cortina fechou e a realidade que até então se foi retardando, finalmente chegou e arrasou com as forças que ainda lhes restavam.

Ele não sabe como, tal é o tamanho das dores que sente, mas consegue sentir o frio da mesa onde se deita, e como está frio. Um prenúncio do que está para vir, ele sabe, elas sabem. Sabem que esta será a última vez que se vão olhar nos olhos, a última vez que se vão cheirar, sentir, ouvir. A doçura da mão da pequena, o amor da voz da mãe, o cheiro das duas, diferente mas tão igual para ele.

Ele quer dizer-lhe coisas, ele quer dizer-lhes obrigada por cuidarem tão bem dele; obrigada por nunca o terem deixado, nem mesmo quando ele não fez as coisas certas; obrigada por lhe terem entregue os seus corações e o terem deixado ser delas e elas dele. Se ele tivesse podido escolher não teria conseguido escolher uma família melhor do que esta. Ele não quer partir, ele quer ficar… já não sabe o que dói mais, o corpo por causa do mal que o assola, ou a alma por saber que tudo termina aqui.

Há poucos amores maiores do que este que vos descrevo, o amor partilhado entre uma família e o seu adorado cão. Enquanto dizem o último adeus ele consegue ser forte por elas, uma última vez. Dá-lhes uma lambidela no rosto, limpando-lhes as lágrimas e fazendo-as perceber que, mesmo com o coração tão pesado, o que conta é o que elas e o seu amado cachorro viveram nunca as deixará e que este momento irá, sem dúvida, definir um reinício nas suas vidas. Por isso, que seja um recomeço de esperança. Sem mais lágrimas, tenta ele dizer-lhes, só com sorrisos.

Mónica Reis

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